Fósseis de DNA e o câncer de tireoide: a descoberta que pode mudar o jogo
O câncer de tireoide é o câncer endócrino mais comum e, na maioria dos casos, o prognóstico é excelente. Os tumores mais frequentes, como o Carcinoma Papilífero, são tratados com sucesso através da cirurgia, e muitas vezes complementados com a iodoterapia, um tratamento que usa iodo radioativo que é captado especificamente pelas células tireoidianas.
No entanto, existe um lado sombrio: em uma minoria de pacientes, o tumor evolui para subtipos extremamente agressivos e resistentes, como o Carcinoma Anaplásico de Tireoide (ATC). Nesses casos, a célula tumoral “esquece” suas características originais, perde a capacidade de captar iodo (processo chamado desdiferenciação) e se torna refratária a praticamente todas as terapias. Mas por que algumas células tumorais se tornam tão indomáveis? A chave pode estar escondida em sequências genéticas que, por muito tempo, foram ignoradas e chamadas de “DNA lixo”.
O “DNA Fóssil” e o Despertar dos “Vírus Adormecidos”
Cerca de metade do nosso genoma é composta por sequências que não codificam proteínas de forma tradicional. Entre elas estão os retroelementos, como o LINE-1 e os HERVs (Retrovírus endógenos humanos). Estes são remanescentes de vírus antigos que se integraram ao nosso DNA há milhões de anos, tornando-se “fósseis” genéticos.
Em células saudáveis, nosso corpo mantém esses elementos em um silêncio rigoroso, por meio de um sistema de vigilância epigenética.
No entanto, como detalhamos em nossa revisão recém-publicada na prestigiosa revista Reviews in Endocrine and Metabolic Disorders (2025) (link para o trabalho completo), essa vigilância falha diante dos tumores de tireoide mais agressivos. É como se a “polícia do genoma” ficasse desativada e esses códigos adormecidos começassem a despertar.
O Caos Genômico da Desdiferenciação
Quando esses retroelementos são reativados — em um processo impulsionado pela perda de proteínas-chave (como o p53) e por alterações epigenéticas —, eles se tornam máquinas de confusão:
- Geração de Caos: O LINE-1, em particular, possui a capacidade de se “autocopiar” e se mover pelo genoma (transposição), gerando transcritos anômalos e desorganizando a forma como o DNA é lido.
- Desdiferenciação: Esse caos provoca uma profunda desregulação gênica, levando as células tumorais a um estado de “plasticidade fenotípica”. Elas perdem as características de uma célula tireoidiana madura, assumindo um perfil mais primitivo e agressivo, com características de células-tronco. É exatamente essa perda de identidade que faz com que o tumor pare de expressar proteínas essenciais para a captação de iodo (como o transportador de sódio/iodo, NIS), tornando a iodoterapia ineficaz.
A Nova Estratégia: Desligando o Motor da Agressividade
A boa notícia que surge do nosso estudo é que o despertar desses elementos pode ser reversível.
O motor que impulsiona a cópia e o movimento do LINE-1 é uma enzima chamada transcriptase reversa (RT, do inglês, Reverse Transcriptase). Nossa pesquisa levanta a possibilidade de que medicamentos que inibem essa enzima (os Inibidores de Transcriptase Reversa, conhecidos pela sigla em inglês RTIs — Reverse Transcriptase Inhibitors), originalmente desenvolvidos para combater o HIV, possam ser a chave.
Ao inibir a RT, conseguimos “desligar o motor” desse caos genômico. Estudos pré-clínicos em modelos de câncer de tireoide refratário mostraram que o uso de RTIs (como a nevirapina) foi capaz de:
- Reverter a agressividade e a proliferação celular.
- Mais importante, restaurar a capacidade do tumor de captar iodo radioativo.
Isso significa que um tratamento antigo e eficaz (a iodoterapia) poderia voltar a funcionar em tumores que antes eram considerados intratáveis.
O Caminho para a Oncologia de Precisão
Essa descoberta abre novas e empolgantes perspectivas para a prática clínica:
- Biomarcadores de Risco: No futuro, a expressão ou o nível de ativação de retroelementos pode servir como um biomarcador para identificar precocemente quais tumores são mais propensos a evoluir para a forma agressiva, permitindo intervenções mais rápidas.
- Novos Alvos Terapêuticos: O uso dos RTIs posiciona-se como uma nova e promissora estratégia para “reprogramar” a célula tumoral, tornando-a menos perigosa e, crucialmente, mais sensível às terapias convencionais.
- Terapias Combinadas: A combinação de inibidores da transcriptase reversa com a iodoterapia ou com outras drogas-alvo pode ser a chave para superar a resistência e a desdiferenciação em cânceres de tireoide de alto risco.
Ao entender a complexa orquestra do genoma e o papel inesperado desses “fósseis” de DNA, damos um passo gigantesco na busca por uma oncologia de precisão mais eficaz no tratamento do câncer de tireoide.
Referências
- D’ALESSANDRE, N. D. R. et al. Retroelements in thyroid cancer: epigenetic plasticity, dedifferentiation, and therapeutic opportunities. Rev. Endocr. Metab. Disord., Nov. 2025.
D' ALESSANDRE, Nathália. Fósseis de DNA e o câncer de tireoide: a descoberta que pode mudar o jogo. Galantelab, 9 de dezembro de 2025. Disponível em: https://galantelab.github.io/blog/c%C3%A2ncer/c%C3%A2ncer%20de%20tireoide/herv/erv/line-1/l1/2025/12/09/fosseis-de-dna-e-o-cancer-de-tireoide.html. Acesso em:
« A navalha e o labirinto: neurodegeneração, simplificação e o lugar da Inteligência Artificial