
Biologia Molecular e Bioinformática na Investigação dos Erros Inatos do Metabolismo
O que são os Erros Inatos do Metabolismo?
As doenças genéticas (DG) representam um dos grupos mais desafiadores na medicina, com uma prevalência global de cerca de 6% da população. Embora cada uma das mais de seis mil DG descritas seja rara, o que inclusive leva, com enorme frequência, à falha diagnóstica no cenário clínico, as desordens genéticas são uma importante causa de morbimortalidade (CHUNG et al., 2022).
Dentre o vasto grupo das DGs, aquelas associadas aos Erros Inatos do Metabolismo (EIMs) somam mais de 1400 entidades reconhecidas na classificação de Ferreira et al. (2021), e afetam aproximadamente 1 a cada 1900 recém-nascidos (WATERS et al., 2018). Segundo a OMS, uma doença é considerada rara quando ocorre em menos de 1 a cada 2000 pessoas e, portanto, as DG causadas por EIMs, enquanto grupo, não são consideradas raras. Além disso, talvez o ponto mais interessante sobre essas DGs seja o fato de que a maioria das doenças genéticas tratáveis seja, de fato, pertencente a esse grupo de EIMs, o que torna crucial o diagnóstico correto dessas condições para salvar muitas vidas, por meio do manejo terapêutico.
De uma forma mais específica, as DGs associadas aos EIMs decorrem da perturbação direta de uma dada via metabólica, o que geralmente se dá por funcionamento deficiente de alguma enzima (proteínas). Isso, na sequência, pode causar uma doença tanto por acúmulo de substratos (produtos catalisados pelas reações enzimáticas) não degradados como por insuficiência de algum elemento molecular que seria resultante do correto metabolismo da via, e que é importante para o funcionamento correto de células e, consequentemente, do organismo. Uma terceira consequência de falhas enzimáticas pode ainda ser a conversão secundária dos substratos acumulados em metabólitos (pequenas moléculas resultantes de reações enzimáticas) tóxicos, por meio de uma via alternativa de metabolização.
Pelo próprio mecanismo patológico dessas condições ser fundamentado na deficiência enzimática, a maioria das mutações genéticas causadoras das DGs associada a EIMs são resultantes da perda, total ou parcial, de funções de um ou mais genes. Em alguns casos, a perda da função de uma cópia gênica (temos duas cópias da maioria dos nossos genes, as quais são herdadas de nossos pais) é suficiente para resultar em uma dessas DG. Nesses casos, tais condições são denominadas DGs Autossômicas Dominantes. Porém, a maior parte das DGs associadas aos EIMs são consequência de mutações em ambas as cópias dos nossos genes, o que as caracterizam como DGs de herança Autossômica Recessiva (FERREIRA et al., 2021).
Como a era da multi-ômica pode revolucionar o diagnóstico dos Erros Inatos do Metabolismo?
Por muito tempo, antes da popularização do sequenciamento de nova geração (do Inglês, Next Generation Sequencing), a maior parte dos EIMs diagnosticados era por meio de exames bioquímicos e enzimáticos, os quais dosavam biomarcadores e atividade enzimática, respectivamente, para as doenças metabólicas que eram bem conhecidas. Talvez possamos dizer que esse foi o grupo de DGs que primeiro fez uso da metabolômica, ao contrário das demais, que antes dos exames citogenéticos e moleculares não podiam ser confirmadas para além da clínica.
Hoje, sobretudo impulsionados pela popularização da genômica, estamos avançando para a multi-ômica, que é o estudo translacional que combina o estudo do DNA aos estudos do RNA e também das proteínas e dos metabólitos. Especialmente para os EIMs, a combinação dos diferentes estudos moleculares e bioquímicos é extremamente promissora, porque se espera que, ao combinar as diferentes frentes de análise, possamos ter diagnósticos mais rápidos e precisos. Vamos a um exemplo prático: imagine que, para um determinado EIM, variantes patogênicas bialélicas (em ambas as cópias dos mesmo gene) sejam necessárias para o diagnóstico da DG. Um paciente, suspeito desse EIM, poderia, por exemplo, realizar um sequenciamento apenas dos exons dos genes (exoma) e receber um laudo descrevendo uma variante patogênica e outra variante de significado incerto no gene de interesse, o que não é o suficiente para o estabelecimento do diagnóstico. Assim, uma avaliação da expressão do gene de interesse, por quantificação do mRNA poderia ser realizada, fornecendo mais uma pista da não funcionalidade do gene. Somado a isso, a quantificação de algum metabólito bem como da atividade enzimática da enzima codificada pelo gene adicionariam mais uma camada na abordagem multi-ômica. Os resultados de todas metodologias combinadas, poderiam, de fato levar ao fechamento do diagnóstico desta DG hipotética. Estudos recentes têm investigado e demonstrado o potencial diagnóstico de se realizar essa abordagens metodológicas concomitantemente na investigação diagnóstica (personalizada) de indivíduos com suspeitas de DGs associadas a EIM (STENTON et al., 2020).
Um outro exemplo enriquecedor para essa discussão seria o do caso de uma laudo descrevendo apenas uma variante em um gene de interesse. Sabemos que a maioria das mutações causadoras de doença encontram-se nas regiões codificantes dos genes (região exônica), mas diversos outros tipos de mutação poderiam ser perdidos por um exame como o exoma (que avaliam principalmente essas regiões), como no caso de uma variante intrônica (região entre exons), ou mesmo em outras regiões do genoma, como no caso de grandes inserções de elementos móveis (muito frequentes em nosso genoma) em regiões que regulam o funcionamento dos genes, algo que escapa às avaliações baseadas em exomas. Nesse contexto, a integração com estratégias multi-ômicas permitiria aumentar a chance de detectarmos algo que a análise isolada do DNA não é capaz de encontrar.
Adicionalmente ao sequenciamento (e outras metodologias experimentais), as análises computacionais (de bioinformática) entram em cena com algoritmos que ajudam a identificar e interpretar variantes genéticas novas. Os chamados preditores in silico são ferramentas de aprendizado de máquina (ou, do inglês, machine learning) que, dada uma variante genética, fornecem uma predição da chance desta variante ser danosa. Esses preditores são empregados para o diagnóstico de qualquer condição genética, mas, por funcionarem melhor para predição de perda de função, que é o mecanismo principal dos EIMs, são especialmente importantes aqui. Isso é ainda mais verdade pelo fato de existir uma enorme heterogeneidade alélica na maioria dos genes ligados aos EIMs, o que leva a um grande número destas variantes novas e, por isso, desconhecidas em termos de impacto, sendo descobertas ao longo do tempo.
Considerando que a maioria das doenças genéticas tratáveis são Erros Inatos do Metabolismo, como podemos utilizar a bioinformática para ampliar o horizonte terapêutico dessas condições?
Como já falamos, a maioria dos tratamentos aprovados hoje para doenças genéticas encontra-se no campo daquelas associadas aos EIMs. Diferentemente de muitas condições congênitas irreversíveis, boa parte dos EIMs não leva a nenhuma doença inicialmente constitucional, e se manifesta temporalmente, em resposta a estresses ambientais ou então de forma insidiosa, o que faz com que haja uma janela terapêutica-temporal na qual uma possível correção da via metabólica alterada poderia impedir o aparecimento ou a evolução da doença e consequentemente a deterioração do organismo. Hoje, diversas doenças metabólicas são tratadas com Terapia de Reposição Enzimática (TREs) e cada vez mais vemos também novas terapias gênicas sendo testadas clinicamente e liberadas para uso de pacientes com diferentes EIMs. Estes tratamentos, embora representem uma conquista inédita na ciência, acabam sendo na prática caros e custosos de se viabilizar, pois podem envolver cirurgias, transplantes e até o uso de quimioterapia. Assim, o reposicionamento de fármacos que já existem no mercado para outras condições tem se mostrado uma estratégia promissora para a ampliação dos tratamentos possíveis para EIMs. Por exemplo, vemos hoje pacientes beneficiados pelo uso da empagliflozina (um inibidor do co-transportador sódio-glicose tipo 2 (SGLT2), originalmente aprovado para diabetes tipo 2) no tratamento da Glicogenose Tipo Ib (GSD Ib). Nessa doença, um erro enzimático leva ao acúmulo de glicogênio em diversas células, inclusive nos neutrófilos, que são importantes células de defesa no corpo humano. Essa medicação mostrou-se eficaz em recuperar o funcionamento celular neutrofílico, aumentando a excreção renal da substância que, em acúmulo, prejudica a ação dos neutrófilos. Esse é apenas um exemplo de diversas medicações que estão sendo reposicionadas para o tratamento dos EIMs.
O reposicionamento de fármacos não é algo novo, e diversos efeitos adicionais de drogas já conhecidas foram descobertos no passado, até mesmo por acidentes de laboratório. Novamente a bioinformática entra nesse contexto para acelerar e melhorar esse processo. Através, por exemplo, dos estudos de docking molecular, do qual a biologia molecular estrutural é o ponto de partida para se investigar possíveis interações entre moléculas-alvo e fármacos já comercializados. Essa primeira investigação pode ser feita computacionalmente, e moléculas candidatas são então testadas in vivo na sequência.
Em síntese, a integração entre biologia molecular e bioinformática não apenas acelera diagnósticos, mas também abre portas para novas terapias. Nos próximos anos, poderemos ver novas descobertas nesse campo com o potencial de transformar o cuidado de pacientes com DGs associadas aos EIMs, mudando histórias e salvando vidas.
Referências
- CHUNG, C. C. Y. et al. Rare disease emerging as a global public health priority. Front. Public Health, v. 10, p. 1028545, Oct. 2022.
- FERREIRA, C. R. et al. An international classification of inherited metabolic disorders (ICIMD). J. Inherit. Metab. Dis., v. 44, n. 1, p. 164–177, Jan. 2021.
- STENTON, S. L. et al. The diagnosis of inborn errors of metabolism by an integrative “multi-omics” approach: A perspective encompassing genomics, transcriptomics, and proteomics. J. Inherit. Metab. Dis., v. 43, n. 1, p. 25–35, Jan. 2020.
- WATERS, D. et al. Global birth prevalence and mortality from inborn errors of metabolism: a systematic analysis of the evidence. J. Glob. Health, v. 8, n. 2, p. 021102, Dec. 2018.
CHAVES, Elisa F. Biologia Molecular e Bioinformática na Investigação dos Erros Inatos do Metabolismo. Galantelab, 1 de setembro de 2025. Disponível em: https://galantelab.github.io/blog/erros%20inatos%20do%20metabolismo/biologia%20molecular/gen%C3%A9tica/2025/09/01/erros-inatos-do-metabolismo.html. Acesso em: